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Há 27 anos, na madrugada do dia seguinte ao Dia dos Povos Indígenas e na véspera do Aniversário de Brasília, uma tragédia afastou todo o clima de celebração da capital federal. Galdino Jesus dos Santos, liderança do movimento indígena do país e então cacique do povo Pataxó-Hã-Hã-Hãe, foi queimado vivo enquanto dormia por cinco jovens de classe média alta do Distrito Federal.
O crime sem propósito é uma mancha permanente na história não só do DF, mas de todo o Brasil, e tornou-se um caso emblemático em todo o mundo. O choque permanece até os dias de hoje não só pela crueldade do ato, mas pela impunidade dos autores: todos os cinco participantes do assassinato de Galdino hoje são servidores em diferentes órgãos públicos, com salários que giram em torno de R$ 15 mil.
Garantir que o episódio daquele sábado 20 de abril de 1997, e o líder do povo Pataxó-Hã-Hã-Hãe, não caiam no esquecimento é uma batalha disputada arduamente por lideranças indígenas, agentes públicos de diferentes órgãos e movimentos sociais nacionais e internacionais.
O Centro de Atendimento Socioeducativo de Luziânia (Case), município do Entorno do Distrito Federal, se junta a este movimento, com o projeto de um curta-metragem que pretende imortalizar a memória de Galdino através da sétima arte. O filme, aprovado em edital deste ano da Lei Paulo Gustavo, ganhará vida através do trabalho dos adolescentes integrantes do Case, orientados pelo agente socioeducativo e cineasta Junior Cette.
“O principal objetivo é colocar esses adolescentes, que vêm de um contexto de marginalização, diante de uma arte que é elitizada e mostrar que o jovem marginalizado pode produzir essa arte, que tem o poder de convencer as pessoas que estão assistindo. Convencer e mudar a mentalidade do público a respeito de um caso que impactou o DF e o Entorno e dar importância à luta da sociedade indígena”, diz o orientador do projeto.
Junior explica ainda que o filme não será um documentário, ou seja, a intenção não é fazer uma retomada dos fatos do caso de 1997. Pelo contrário, a intenção é, através da ficção, mostrar as pessoas que existem por atrás das lutas e tragédias vividas não apenas por Galdino, mas por tantos outros indígenas.
“Quando o público acompanhar a história e os diálogos, eles vão se aproximar daquele personagem e se sensibilizar com histórias como as do Galdino”, completa.
O curta-metragem, que ainda está na fase inicial de desenvolvimento, pretende contar com a participação de, no mínimo, seis integrantes do socioeducativo, que irão assumir funções tanto de escrita e pesquisa, quanto de produção audiovisual. Segundo previsto no edital, o filme deverá estar pronto em meados de dezembro.
Junto às atividades cinematográficas, os adolescentes também terão uma experiência imersiva na Casa de Cerimônias Indígenas Bahsakewii Yepá-Mahsã, localizada no Território Indígena do Noroeste. O espaço, que realiza desde cerimônias tradicionais indígenas à exposições e oficinas para o público em geral, é coordenado pelo cacique da comunidade Balaio, Álvaro Tukano, 71, que empresta o espaço e suas vivências como uma das lideranças a frente do movimento indígenas nos anos 80 e 90 ao longa.
“As pessoas que estão encarceradas [seja em regime fechado ou no semiaberto, como é o caso dos jovens no socioeducativo] acabam cometendo algumas coisas pequenas e são tratadas como as pessoas mais perigosas na sociedade. Acham que todos os jovens têm que ser iguais, mas eles não têm as mesmas oportunidades. Eles [os jovens do socioeducativo] não têm as mesmas condições dos de classe alta. Eles muitas vezes não têm pai, mãe, o quê comer ou esperanças para o futuro”, reflete Álvaro Tukano.
“Esse trabalho é muito importante, porque é fatal a situação do Brasil em relação à falta de educação e respeito às minorias. Eles acham que porque é ‘mendigo’, porque é ‘índio’, eles podem tacar fogo ‘brincando’. E enquanto o Galdino deixou órfãos e deixou uma história, as pessoas que fizeram aquilo continuam estudando, trabalhando e hoje são desembargadores”, completa o cacique.
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Em abril deste ano, o Metrópoles mostrou um levantamento do Observatório de Violência e Socioeducação do Distrito Federal que revelou que 73,14% dos jovens do sistema socioeducativo estão em lares com renda familiar entre um e três salários mínimos, enquanto 22,06% são de famílias ainda mais vulneráveis, com renda menor que um salário mínimo.
Além disso, o relatório aponta que 94,67% dos menores são moradores da periferia e do Entorno do DF. Destes, cerca de 54 jovens são do Entorno.
A agente socioeducativa e psicóloga Marleide Borges acredita que o cenário em que esses jovens estão imersos é marcado por desigualdades sociais e econômicas, e por isso, ela acredita que o projeto é importante dar oportunidade de reflexão e diálogo entre dois grupos marginalizados.
“Se a gente for olhar onde a gente trabalha [nos centro socioeducativo], nós não vemos filhos de ricos lá, mas a gente sabe que eles também transgridem. Tanto que existiu um menor envolvido no assassinato do Galdino. Então o quê a gente quer refletir a partir desse filme é que diante desses vários cenários, existe um pai, uma família, infâncias e uma memória que se perdeu nessa tragédia”, disse.
Era madrugada de sábado, 20 de abril de 1997, quando Galdino Jesus dos Santos, liderança do movimento indígena do país e então cacique do povo Pataxó-Hã-Hã-Hãe, dormia em uma parada de ônibus da 704 sul.
O cacique havia por ter perdido o horário do toque de recolher da pensão onde estava hospedado após passar todo o dia 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas, em eventos e passeatas na capital federal em defesa aos direitos dos 305 povos e comunidades originárias do Brasil.
Cinco jovens de classe média alta do DF avistaram Galdino enquanto andavam de carro pela W3 Sul e, segundo afirmaram à época, acreditaram que passava apenas de mais uma das pessoas em situação de rua do Plano Piloto de Brasília. Tomás Oliveira de Almeida, 18, Max Rogério de Souza, 19, Antônio Novely Cardoso Vilanova, 19, Gutemberg Nader Almeida Júnior, 17, e Eron Chaves Oliveira, 19, decidiram então queimar o cobertor com o qual Galdino dormia, para tirá-lo do sono no susto.
A brincadeira logo se tornou em tragédia, conforme as chamas de espalharam mais rapidamente que os jovens previam. O cacique teve 95% do corpo queimado, incluindo queimaduras de terceiro grau – que atingem todas as camadas da pele e podem chegar aos ossos. O cacique morreu no dia 21 de abril daquele ano, aniversário da capital federal, no Hospital Regional da Asa Norte (Hran), referência no atendimento de vítimas queimadas no DF.
Quase um quarto de século após a tragédia, familiares de Galdino trabalham para manter viva a sua memória e ainda lutam pelos direitos que ele veio a Brasília reivindicar, quando acabou morto. O assassinato de Galdino continua a provocar repercussões nas ações cotidianas do povo Pataxó HãHãHãe.
“É uma história que para a sociedade está morta, mas segue viva e guardada dentro da gente. Reacender essa memória é viver a nossa história“, descreve Iglesio de Jesus Silva – de nome indígena Thyrry Yatsô -, sobrinho de Galdino, que tinha 11 anos quando recebeu a notícia da morte do tio.
Iglesio se tornou historiador e reconstruiu a história de vida do tio e seu simbolismo dentro da comunidade através de uma biografia premiada. “Continuamos lutando pela terra. Muitos indígenas foram assassinados antes e depois de Galdino, mas sem qualquer repercussão local ou nacional. A lembrança do ocorrido tem possibilitado fazer com que as demandas do passado se transformem em exigências do presente”, diz.
Enquanto isso, atualmente, quase 30 anos após o crime, os cinco participantes do crime são servidores em diferentes órgãos públicos.
Saiba onde trabalham e quanto recebem: